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quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Crônica

 ANJOS TORTOS

 Por Misael Nóbrega de Sousa

Quando a cova foi aberta, não existia mais nada ali. Apenas, um ossário brotava do chão. Vermes se alimentavam do que mais parecia estrume para as ramas. Quase tudo havia sido tragado pela terra-marrom. O sepultamento é politicamente higiênico, e somente. O culto não é adoração, mas... Um ritual desnecessário. Para que se valer dos mortos? 

O dia de finados deveria servir de pretexto para o esquecimento dos mortos. Deixar que eles jazessem, deslembrados. Poderíamos eleger este dia para visitar os vivos. O que há de fato naquelas catacumbas? Epitáfios e fotografias mórbidas, esmaecidas; cruzes de ninguém; velas em decomposição; rosas arrancadas... Gente morta? Sim. Ruelas de mausoléus e anjos tortos. Há o que ninguém quer ver. Somos atraídos pelo espetáculo. A repetição de uma consternação. Imitar.
Um périplo desproporcional; um entra e sai de viúvas; cantos agonizantes; cheiro de extinção... E gritos de inocentes. A desculpa da “tradição” é um entrave na evolução do pensamento. Um dia universal para venerar os mortos. Não há nada mais absurdo, na discussão prática. O dia de Finados é um dia de tristeza. Se fôssemos zelar pelo túmulo: lustrar o Cristo de bronze, limpar a porcelana, trocar a água dos vasos... 

Prantear o defunto, a cada ano, é remoer as próprias dores e, o mais intrigante, promover também a dor nos que se chegam à família, sem ter sabido do óbito. Não me pouparam, quando criança, da vigília aos que se foram primeiro. E eu tive sonhos letargos. Tentarei não repartir esse desgosto com os filhos meus. Apenas o respeito aos mortos devia nos bastar. O passeio coletivo ao cemitério, no dia de finados, é mais um círculo doentio de prazer. É quem sabe um abuso.

Na placidez da aurora prima, acordo sem sobressalto; rego as plantas, e todas que encontro; banho-me calmo e demoradamente; deixo escorrer até o último pingo d água; abro o guarda-roupa e procuro a peça mais cômoda; e escolho, ainda, o melhor perfume... Como que me embalsamando.

À rua, absolvo os meus pares. Alcanço a praça e ali descanso. Exijo silêncio do silêncio. Tenho inveja do casal de rolinhas - que protege um ao outro; vejo uma velha-senhora, capenga, “sombrinha” colorida... E puxando um menino que me sorri banguela. A vida é um tanto engraçada. A morte não representa grande coisa.


Professor e jornalista

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