Inácio A. Torres
O texto que constitui o miolo dessa
coluna merece crédito duplo. Primeiro, porque foi escrito por um trabalhador da
medicina em estado de indignação, porém com muita lucidez e racionalidade. E,
segundo, porque certamente o território de atuação desse trabalhador, o Rio
Grande do Sul, um estado da federação brasileira mais evoluído em saúde
pública, oportuniza uma visão real e provocativa sobre o assunto.
O conteúdo do referido texto retrata a
inquietação do autor, com quem concordamos em grande parte. As críticas são
pertinentes, porém, em nossa opinião, faltaram ou não ficaram claras sugestões
e alternativas para tirar não somente a sua profissão, mas também a saúde
brasileira desse estado agonizante.
Sem dúvidas, o SUS e o PSF tem defeitos
e imperfeições, porém não se pode negar que a saúde brasileira não venha
melhorando nos últimos 25 anos. Não tenho receita, mas ponho a crença de que se
conseguirmos articular com justiça, respeito e patriotismo as instituições
formadoras (as universidades) dos trabalhadores da saúde com os gestores, os
serviços e o controle social, elegendo para esse último – refiro-me aos membros
dos Conselho Municipal, Estadual e Nacional de Saúde – cidadãos e cidadãs
emancipados e não manipulados, com certeza, sairemos dessa situação agonizante.
O mais acertado é – refiro-me a todos nós brasileiros e brasileiras –
vestirmos, de verdade, a camisa do SUS/PSF e não cruzar os braços.
O texto do Dr. Milton Pires, médico de
Porto Alegre, RS é relevante e serve de alerta a todos nós, por isso mesmo
recomendamos a leitura e, se possível, uma discussão envolvendo os
trabalhadores da saúde, políticos, gestores e o povo em geral. Leia-o a seguir
e emita seu comentário para o DS.
“Permitam-me os colegas fazer uso no
presente artigo dos dois discursos que mais encantam o “meio intelectual
brasileiro” – o marxista e o psicanalítico. Esqueçam, por alguns instantes,
aquilo que ambos dizem do mérito e da caridade humanos. Espero que minhas
conclusões não os choquem e sugiro ainda que, em caso de indignação, adotem
como saída elegante afirmar que não gosto de ser médico; passa a impressão de
profissionalismo e pena profundos de alguém como eu….rss
Tenho visto profissionais, às vezes de
sessenta ou setenta anos, fazendo plantão nas emergências do Sistema Único de
Saúde (SUS).Comem mal, não dormem (ou o fazem em quartos imundos), são
ameaçados ou agredidos pelos próprios pacientes, alguns roubam medicações
controladas para uso próprio, e muitos acabam como notícia no Jornal
Nacional.
Seu instrumento de trabalho mais
importante é um carimbo e seu chefe é uma enfermeira. Eles assistem pacientes
morrerem por falta de medicamentos, leitos, cirurgias e métodos diagnósticos.
Dia após dia, independentemente de posição política ou tempo de formatura, são
representantes legítimos de um delírio cujo início remonta a década de setenta.
Naquela época, um médico brasileiro,
ex-assessor para saúde na Nicarágua, e que depois viria se eleger deputado por
um partido comunista, pensou ser possível trazer à terra aquilo que nem Jesus
Cristo imaginou: um sistema de saúde com livre demanda, cobertura completa de
custos, e acesso imediato aos serviços. Sim, meus amigos, o Brasil deve ao Dr.
Sérgio Arouca e aos seus “companheiros” o fato de homens maravilhosos como
Fernandinho Beira-Mar e Marcola terem o mesmo direito a um leito de Unidade de
Terapia Intensiva (UTI) que qualquer trabalhador.
Certamente, se vivo, o Dr. Arouca
ficaria exultante ao ver como nossas UTIs são numerosas e estão bem equipadas e
eu gostaria de saber como ele explicaria o fato de Lula não tratar seu câncer
no SUS.
Uma década antes, no governo Castelo
Branco, o Brasil assistia ao início de uma proliferação de faculdades que nos
lembra que nem só de futebol somos campeões. Daqueles bancos saíram médicos, e
continuam saindo, que vêem no futuro a possibilidade de uma prática liberal que
a muito deixou de existir.
A verdade é que nos tornamos empregados!
O estereótipo do médico recém-formado que vai para o interior casar com a filha
de um latifundiário e depois disputar algum cargo municipal é cada vez mais
difícil de ser encontrado.
Ao que nos parece, em 1964 os militares
viram na classe médica uma ameaça política e trataram de tomar providências. A
primeira delas, em silêncio garantido pelas paredes da Escola Superior de
Guerra, foi determinar que saúde era uma questão de segurança nacional. A
segunda, bem mais simples, foi submeter os médicos a mais elementar lei de
mercado: oferta e procura.
E o que houve daí em diante? Tornamo-nos
muitos, empobrecemos, nos sindicalizamos, e acima de tudo passamos a crer, como
bons marxistas, que tínhamos um poder de transformação social até então
adormecido. Era preciso ser um “trabalhador da saúde”. Médicos ligados à saúde
pública começaram a despontar na cena política, mas desta vez ligados aquilo
que se chamava na época de “esquerda”.
O país assistia então ao nascimento do
Partido dos Trabalhadores e quem não lutava por eleições diretas não tinha
coração. Enquanto isso, em silêncio mas de forma contínua, o sistema que fazia
diferença entre aqueles que trabalhavam e contribuíam ou não para os gastos com
a saúde nacional extinguia-se aos poucos.
Alheios a tudo, os antigos mestres das
Escolas de Medicina, consagrados pelo tempo e saber, continuavam ensinando que
o importante era a relação médico-paciente, que a medicina não podia se
desumanizar e conseguiram com isso contribuir para a visão maniqueísta que
passou a nos dividir entre “técnicos-frios” ou preocupados “com o paciente como
um todo”.

Mas a mim me parece que o sonho está
acabando. Voltamos de lá e estamos de plantão. O que poderia ter saído errado?
Nossos pacientes já não nos respeitam e querem apenas atendimento de graça. Não
nos esqueçamos dos famosos exames – quem não os pede não pode ser bom médico!
Será generalizada entre os colegas esta
minha sensação? Medicação antidepressiva, menos trabalho e um salário melhor
não resolveriam meu caso? Estas respostas ficam por conta de quem até aqui
gastou seu tempo a me ler.
Uma vez Freud escreveu que a capacidade
do indivíduo ser feliz está relacionada à realização no amor e no trabalho. Da
vida pessoal de meus colegas pouco sei, mas tenho visto em pequenas salas (chamadas
pelos otimistas de estar médico), em que se toma cafezinho frio, uma verdadeira
legião de gente triste.
Isso mesmo, meus colegas, tristes é como
estamos em função do que fazemos para sustentar nossas famílias. Aos dezoito
anos de idade, com todas as alegrias desta época da vida, estávamos, muitos de
nós, em frente a cadáveres. Quantas noites sem dormir por causa dos exames da
faculdade? E o que dizer então da disputa por uma vaga na residência?
Somos médicos, mas antes de tudo somos
humanos e é nesta última condição que a natureza e a doença vêm cobrar seu
preço. Aumenta cada vez mais o número de colegas com problemas por causa do
álcool e das drogas. Patologias mentais entre nós avançam em número e
gravidade. Frieza, discussões, insensibilidade com a dor, e raiva das queixas
frívolas dos nossos pacientes são cada vez mais comuns nas emergências em que
trabalhamos com condições quase veterinárias.
Pobre do país cujos médicos estão
doentes! Era neles que se depositava a esperança de alívio de um povo que agora
percebe que ele, povo, cuidou muito mal dos seus próprios médicos. Estamos
pedindo socorro a pessoas comuns, sem treinamento, mas nem por isso sem coração
e vontade de ajudar.
Alguém há que nos possa e queira ajudar?
Uma vez aquele que foi considerado o
maior escritor de todos os tempos – James Joyce – disse que achava impossível
escrever sem ofender as pessoas. Termino aqui. Longe de mim ofendê-los por mais
tempo ou ter a audácia de pensar que Joyce pudesse estar errado".
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